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Fédon, Platão

“Existe um acordo geral entre os especialistas em colocar este diálogo entre as obras mais tardias de Platão. Por volta dos seus quarenta anos, após regressar a Atenas da sua viagem à Sicília, funda a Academia e escreve o Fédon, o Banquete, A República e o Fedro, aproximadamente por esta ordem. Isto acontece por volta do ano 387 a.C., quando Platão chega nestas obras não somente a elaborar e expressar de maneira cabal as suas próprias ideias filosóficas, mas também chega ao auge do seu estilo e capacidade compositiva.”.

A morte de Sócrates

A pintura acima é de Jacques-Louis David, nomeada “A morte de Sócrates”, esta que é narrada em Fédon. O filósofo encontra-se recebendo o cálice com o veneno que o mataria, e o mesmo está apontando para os céus, semelhante a Platão em “A escola de Atenas”, o que simboliza seu pensamento idealista e metafísico, do transcendental e do verdadeiro conhecimento que reside em algo mais elevado do que é possível adquirir neste mundo. De maneira fiel a obra, o seu carrasco (aquele que lhe entrega o cálice) também encontra-se em negação, pois admirava Sócrates. Platão é o principal autor a criar uma imagem de quem foi Sócrates (este que não escreveu nenhum livro), desta maneira é um tanto difícil dizer (pelo menos para mim) quem é Sócrates e quem é Platão e onde eles se separam. Esta obra utiliza Sócrates apenas como seu personagem, pois foi escrita após a “fase socrática” de Platão. Isto é dito por diferentes filósofos devido a referências claras nesta obra como o conceito de “Aprender nada mais é do que recordar”, o que traz de maneira clara o pensamento de Platão a respeito do mundo das ideias, sua máxima teoria. Por conta disso, a pintura acima é ainda mais difícil de compreender, dado que aquele que aponta aos céus é Sócrates, porém inegavelmente este Sócrates que nos fala é Platão, e Platão por sua vez encontra-se também como o último homem sentado a esquerda, já velho (apesar de ser jovem nesta época e o mesmo dizer que não estava presente no dia da morte de seu mestre). Alguns críticos dizem que podemos reparar como toda ação parte de Platão, mais especificamente sua cabeça. Podemos então contextualizar isso como se fosse uma memória, algo imaginado pelo próprio discípulo de Sócrates, uma vez que Platão (o velho sentado) está de fato fora da ação na pintura, separado de todo o contexto e coloração, como se tudo aquilo fossem apenas as suas ideias e memórias de algo que sequer presenciou.

“Talvez para Platão, — um homem que acreditava que a realidade mais fundamental é composta de ideias — este fosse o verdadeiro Sócrates: aquele que habita em sua mente. Forte, colorido, energético e desafiador até o fim.”


Introdução

Fédon é um diálogo escrito por Platão onde é narrado os últimos momentos de seu mestre Sócrates, após ser condenado pelo tribunal de Atenas por corromper os jovens e não acreditar nos mesmos deuses que a cidade. O diálogo se passa após a morte de Sócrates, e é narrado por Fédon à Equécrates. Fédon e vários outros discípulos de Sócrates foram o visitar na prisão, e ali todos encaram tristes e desolados o fim que terá a vida de Sócrates. Sócrates porém, está feliz e não demonstrara nenhuma intenção de fugir, se exilar ou aceitar que pagassem em dinheiro para que sua pena não fosse aplicada. Ao ser questionado em como podia ele não temer a morte, ou mesmo como podia ele aceita-la de braços abertos sem nenhum remorso. Sócrates então inicia a sua última lição:

“Não se deve temer a morte, e sim abraça-la”.

A morte como libertação do pensamento

Em um tom de humor, Sócrates agora está frente a mais um julgamento. No primeiro, foi incapaz de convencer os juízes a respeito de sua inocência, e neste, deve convencer aos seus discípulos a respeito da imortalidade da alma.

Sócrates afirma que aquele que se dedicou verdadeiramente a filosofia tem como sua única ocupação preparar-se para morrer. E por isso, não faria sentido algum se o mesmo estivesse irritado ou preocupado com a sua morte. Seus discípulos não entendem inicialmente, porém Sócrates e seus discípulos concordam em um ponto: A morte é dita a separação da alma e do corpo.

Inicia-se então um processo de dialética:

Crês que um filósofo deva dedicar sua vida a prazeres como comer e beber? Não.

E do amor? Tampouco.

E dos prazeres do corpo, se interessará por possuir boas vestimentas ou sandálias de qualidade, ou não se importará com essas coisas se a força maior duma necessidade não o obrigar a tê-las? Se for verdadeiramente filosofo não dará importância.

Ou seja, as preocupações de tal homem não se dirigem ao corpo, para o que diz respeito ao corpo, mas ao contrario, a medida em que lhe é possível se afastam do corpo, e é para a alma que estão voltadas? Sem dúvida.

O filosofo é então aquele que ao contrário de todos os homens, afasta tanto quanto pode a alma do contato com o corpo.

Dito isto, um questionamento/afirmação é feito por Sócrates:

Quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, o corpo é um entrave se na investigação lhe pedimos auxilio. Acaso alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, quando dizemos que não vemos ou ouvimos com clareza? Se estas (visão e audição) sensações corporais não possuem exatidão e são incertas (tanto a fala quanto a leitura abrem espaço para interpretação), segue-se que não se pode esperar coisa melhor das outras (outros sentidos do corpo utilizados para transmitir o conhecimento). Quando é pois que a alma atinge a verdade? Quando ela quer investigar e faz uso da ajuda do corpo, ele a engana radicalmente. É então no ato de raciocinar e de nenhum outro modo, que a alma apreende em parte a realidade de um ser. E sem duvida ela raciocina melhor quando sem o empecilho do ouvido, da vista, de um sofrimento ou de um prazer. Raciocina melhor quando isolada e abandona o corpo a sua sorte. Quando rompe tanto quanto é possível com o corpo, anseia pelo real. É nessa ocasião então, que a alma do filosofo alcança o seu ponto mais alto, quando desdenha do corpo e foge.

A Realidade em si mesma

Sócrates então continua:

Afirmaremos a existência do justo em si mesmo, do belo em si, do bom em si, ou a negaremos?¹ Admitiremos.

Mas é certo que jamais viste qualquer ser deste gênero com os olhos? Jamais.

Se não é pelo corpo que podemos observar estas entidades eternas, é certo que aquele de nós que estiver no mais alto ponto preparado para pensar em si mesmo cada uma dessas entidades obteria a maior pureza acerca destes seres. O fará quando realiza o ato de raciocinar sem recorrer a vista ou aos ouvidos, libertando-se do corpo inteiro, que perturba a alma e não a deixa aprender a verdade. Este homem é quem alcançará o real verdadeiro.

Sócrates propõe que os vivos nascem dos mortos, pois as almas dos defuntos estão no Hades, e através de sua dialética faz com que concordem com ele. Este dialogo é extenso e profundo, de maneira que introduz as noções de quais os processos ocorrem após a morte no Hades, os rios que Sócrates batiza (sendo maior parte deles no Hades), tudo para culminar em um conceito geral da imortalidade da alma e o que é o conhecimento.

Nesta obra Platão nos introduz o conceito de:

“Aprender não é outra coisa se não recordar.”

Para haver recordação de algo deve-se primeiro saber este algo. E Platão também argumenta que o ponto de partida de uma recordação pode ser um semelhante ou também um dessemelhante, uma vez que por exemplo, ao vermos a roupa de um falecido, lembramos do falecido, e a roupa e o homem não são semelhantes. E considerando o caso em que o semelhante nos serve de ponto de partida de uma recordação qualquer, somos forçosamente levados a pensar algo como: “Falta ou não alguma coisa ao objeto considerado, em sua semelhança com aquilo que nos recordamos?”. A partir disso, Platão sugere que existe o Igual em si, isto é, não a igualdade entre um pedaço de pau ou outro, nem de uma pedra a outra pedra, mas uma coisa que comparada a tudo isso, se distingue, o Igual em si mesmo (creio que Platão aqui se refere que tanto o igual em si mesmo é diferente de todos eles por se tratar do conceito no mundo das Ideias, quanto o fato de que Igual em si mesmo é somente igual a si mesmo, e por isso nada seria semelhante a ele).

Em uma outra passagem, novamente somos levados a ideia de que aquilo que conhecemos nada mais é do que uma sombra ou reflexo do verdadeiro.

Ao vermos um objeto dizemos “Este objeto que estou vendo tem tendência para se assemelhar a um outro ser, mas, por ter defeitos, não consegue ser tal como o ser em questão, e lhe é pelo contrário, inferior.”

Platão argumenta que em algum momento devemos ter conhecido o Igual em si mesmo (que nossa alma em algum momento o conheceu), e que dessa maneira, nossa alma uma vez fez parte do mundo das Ideias/Formas, e lá ela conheceu o Belo, o Justo o Piedoso e tudo mais que é a Realidade em si.

Na teoria da reminiscência, Platão argumenta que o conhecimento não é adquirido por meio da experiência sensorial ou da observação do mundo material (como discutido acima), mas é inato na mente da alma. Segundo Platão, antes de encarnarmos nesta vida, nossas almas existiam no “mundo das Ideias” ou “mundo das Formas” (Eidos), onde tinham acesso ao conhecimento perfeito e eterno. Quando nascemos, nossa alma esquece esse conhecimento, mas o ato de aprender é, na verdade, um processo de recordar ou relembrar aquilo que já sabemos. Portanto, a aprendizagem é vista como uma forma de resgate da verdade interior que já está presente em nossa alma.

No resto do diálogo, o personagem Sócrates continua a convencer seus discípulos de que a alma é imortal, através do seu exemplo dos contrários, o que para mim pessoalmente não foi uma prova de fato através da dialética como em tantos outros momentos da escrita de Platão, mas apenas um recurso poético do mesmo ao comparar o par e ímpar, a vida e a morte, a alma e o corpo, e assim dizendo que a alma não aceitaria o contrário do que traz consigo, e logo ela foge da morte como o ímpar foge do par ao somarmos uma unidade.

Em Fédon, é exposta a visão de Platão sobre a natureza do conhecimento, da alma e da realidade.


¹ Platão volta um passo para admitir que os participantes do diálogo concordam com uma de suas máximas, as Formas/Ideias (Eîdos), o conceito de que o mundo que percebemos através dos nossos sentidos é apenas uma sombra ou imitação imperfeita das Formas verdadeiras, formas que só podem ser aprendidas pela razão. Sendo assim, Platão cria os conceitos de “o justo em si mesmo” ou “o belo em si mesmo” referenciando a Forma eterna e divina do Justo e do Belo, que estão além do mundo físico.

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